Sideways: Entre Umas e Outras (2004)
O sommelier traz a garrafa para a mesa e o Pedro já sabe que será ele a (a)prová-la. Conhece perfeitamente o ritual: cheirar, girar o vinho no copo, cheirar de novo, provar… Mas o pior é depois, ter de fazer algum comentário porque não faz a mínima ideia o que dizer. Nunca vai conseguir falar com à-vontade sobre as notas de "framboesa colhida de madrugada", nem das "trufas molhadas" ou empregar qualquer outro adjetivo indecifrável que os críticos costumam usar. E nem percebe muito bem por que razão tem de o cheirar…
O "Pedro" é um personagem inventado, mas as suas dúvidas e angústias podem muito bem ser vividas por qualquer pessoa. A verdade é que o vinho é a bebida mais extraordinária, mas também a mais deliciosamente complexa que vamos ter no copo. Por isso não é difícil ser apanhado numa situação para a qual não nos sentimos preparados, mas é igualmente verdade que o vinho não foi inventado para dramas. Pelo contrário, o objetivo é gerar prazer, alegria e bons momentos. Por isso vamos lá tentar descomplicar para aproveitar tudo o que este néctar tem para oferecer… Já agora, quem não "entende" o porquê de cheirar o vinho, experimente beber com o nariz tapado. Não precisa de saber identificar todos os componentes do bouquet para perceber a importância do olfato nesta experiência. Sabia, aliás, que as papilas gustativas (na língua e no palato) só conseguem reconhecer quatro sabores: doce, salgado, amargo e azedo? Cabe ao nariz captar todas as nuances. Um ponto muito pertinente numa época em que temos tanto medo de perder o paladar e olfacto…
À prova
Já se perguntou como é que os especialistas conseguem identificar tantas notas? Precisamente porque encaram a coisa de forma profissional. Treinam o olfato, recolhem, catalogam e memorizam os cheiros - ninguém consegue identificar algo que não conhece, não é? Por isso, há que aproveitar todas as oportunidades para treinar este sentido, e isso não significa beber. Por exemplo, a comer um gelado é fácil identificar muitos aromas presentes numa garrafa: baunilha, menta, chocolate, caramelo, etc. dependendo obviamente dos sabores que escolher.
Dito isto, numa prova não se comentam apenas as notas do vinho, mas também a sua textura: se tem muita presença na boca, tem corpo; se tem pouca, é leve. O primeiro tem mais taninos, o segundo mais acidez. Um tem mais álcool e sabor, o outro mais complexidade aromática. Talvez seja mais fácil perceber estas nuances e, por isso, da próxima vez que tiver de comentar um vinho no restaurante opte por falar do seu volume na boca. Vai impressionar os amigos, e até o escanção. Só não caia no erro de dizer que um branco tem muitos taninos, porque deita tudo por terra.
Um vinho, muitos defeitos
Esta é a história de um casal que pediu um vinho no restaurante e achou que estava estragado. Explicaram-no ao escanção que tinha duas hipóteses: ou aceitava a troca ou tentava demove-los. A primeira hipótese teria sido mais acertada, para mais porque não implica qualquer prejuízo pois o restaurante pode sempre devolver a garrafa à distribuidora. Infelizmente optou pela segunda, argumentando que aquilo que viam como defeito não o era, antes o caráter pretendido pelo enólogo. Teve azar, porque o interlocutor era o próprio enólogo, que se apresentou nessa altura.
Conseguir identificar alguns dos erros mais comuns (ou graves) será tão ou mais importante ainda do que perceber esta ou aquela característica. A nossa pequena história esconde, no entanto, essa nuance: por vezes o que é entendido como um defeito pode mesmo ser uma característica. Um exemplo são os vinhos mais turvos, quase sempre um defeito causado por proliferação de bactérias ou leveduras, mas perfeitamente aceitável em vinhos naturais - muito na moda - que não apresentam grande clarificação precisamente por serem alvo de muito pouca intervenção enológica. Resumindo, estes são alguns dos principais defeitos a que deverá estar atento:
Brett - Muitas vezes identificado como suor de cavalo. Arrghhh! O cheiro lembra equídeos suados, e há quem fale em estrebarias, pocilgas. Pelas comparações percebe-se que não pode ser coisa boa. Ainda assim, em doses muito suaves pode até significar alguma complexidade, mas quando o cheiro é evidente está na hora de mandar o vinho para trás.
Rolha - Um aroma facilmente identificado pelo cheiro a bolor ou mofo na rolha. Tem origem num fungo que ataca a cortiça.
Oxidação - Comum nos brancos correntes, sem potencial de guarda e que ao fim de poucos anos já apresentam uma espécie de cheiro a maçã estragada. Tal como com o fruto, aqui o problema também pode ser provocado por um contacto excessivo com o oxigénio.
Cozido - O líquido não gosta de se bronzear, mas infelizmente alguns estabelecimentos gostam de colocar os vinhos na vitrine, para os destacar. Em contacto com o sol perdem toda a vivacidade e é como se estivesse a beber uma coisa inerte, sem vida. O oposto da essência do vinho. Mais uma vez, é mandar para trás.
Portugal, um mundo à parte
Enquanto o resto do mundo, novo e velho, revolucionava as suas técnicas de produção e colocava todas as fichas numa dúzia de castas (as Cabernet Sauvignon, Merlot ou Syrah, nos tintos, Sauvignon Blanc, Chardonnay ou Riesling nos brancos), Portugal permanecia adormecido, isolado pela ditadura. Curiosamente, esse atraso significa que subsistem hoje vinhas centenárias (ou quase), com dezenas de castas misturadas. Um património único que a viticultura moderna respeita e preserva. Temos num país tão pequeno centenas (cerca de 300) de castas autóctones, com a dificuldade acrescida de muitas mudarem o nome entre regiões. A estas acrescem ainda as internacionais, que por aqui se dão muito bem. Ou seja, num tema tão complexo, o mais importante será perceber quais as casas mais representativas de cada região, como o triunvirato Alvarinho, Loureiro e Avesso no Minho, ou Alfrocheiro, Jaen e Encruzado (branca) no Dão. E algumas são omnipresentes, como a Touriga Nacional, à qual até Bordéus já se rendeu, sabia? A partir deste ano, os Châteaux já podem plantar a nossa casta rainha nas suas propriedades.
Paring, maridagem, harmonização
Que vinho escolher para acompanhar cada refeição? A tradição manda que peixe vai com branco e carne com tinto, mas a tradição já não é o que era. E o que fazer quando não é carne nem é peixe? Por vezes faz sentido um certo contraponto entre a comida e o vinho, como é o caso dos queijos, cuja cremosidade liga melhor com a acidez de um branco. Num tinto podem exponenciar demasiado os taninos, deixando a boca seca. Mas por vezes a opção deve ser a complementaridade, e um tinto com notas de bosque (como os Dão) acompanha melhor cogumelos ou carnes vermelhas. A verdade é que existem tantas exceções que até as exceções têm as suas exceções… O bacalhau é o único peixe que vai com tinto, exceto se for cozido, que vai melhor com branco… No fundo, a regra é mesmo a sua ausência e tudo se resume a um gosto pessoal por isso, num restaurante, não tenha medo em aconselhar-se com o sommelier, expondo estas dúvidas. Vai ver como ganha o seu respeito.
A temperatura certa
Eis um grande problema, mas de fácil resolução. Em Portugal temos por hábito beber os tintos demasiado quentes. Mesmo em bons restaurantes, para não falar na casa dos amigos. A famosa "temperatura ambiente" na verdade não quer dizer nada, e se alguma vez teve significado foi numa altura em que as casas não eram aquecidas. O calor faz com que o álcool sobressaia demasiado, mascarando todos os outros aromas. Não contentes com este erro, com os brancos fazemos a mesma coisa, mas ao contrário. "Estupidamente gelado" é mesmo estúpido, porque a 5°C não há aroma que se liberte. Como regra, sirva os seus brancos a 8° e os tintos a 16°, ou mesmo a 15°. Em casa tenha sempre um termómetro, e num restaurante pode até ver se a garrafa (de tinto) está fresca ao toque.
O barato não sai caro
Ninguém, no seu perfeito juízo, vai dizer que um Planalto é melhor do que um Barca-Velha. Mas numa esplanada, ao fim da tarde de um dia de calor vai saber muito melhor. A ocasião faz o vinho e não precisa de servir apenas os melhores para provar como é um entendido. O segredo está em saber escolher, e temos vários vinhos de qualidade a preços bastante acessíveis. Por exemplo, a Herdade de São Miguel oferece um rosé muito claro, mineral e descomplexado. Perfeito como entrada. E o Esporão um vinho Verde Bico Amarelo, muito harmonioso na boca. Custam ambos menos de 5 euros. E por mais dois consegue um tinto já bastante complexo da Costa Boal, a Flor do Tua. São três exemplos, mas podiam ser muitos mais, porque hoje a qualidade dos vinhos é tão controlada - tem de passar pelo crivo das comissões regionais e do Instituto do Vinho e da Vinha - que é muito mais provável encontrar um vinho que se deixa beber, do que o contrário. Por isso, relaxe, feche os olhos, desperte os sentidos e deixe que a viagem comece.
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